D. Manuel Clemente cometêu a imprudência de me convidar para apresentar o seu último livro, “É Êste o Tempo” (Porto, 24 de março). Aqui fica o resultado dessa imprudência.
I. O mêu estímulo perante êste livro é o seguinte: sendo êu um homem de Atênas, como posso compreendêr um homem de Jerusalém? Ou seja, como posso traduzir a linguagem de Jerusalém dêste livro para a minha linguagem ateniense? Em outros livros, D. Manuel Clemente, o bispo, é apenas Manuel Clemente, o intelectual público, o historiadôr, alguém que fala a linguagem da Cidade. Isso não se passa com "É Êste o Tempo", que é mêsmo um resultado de D. Manuel Clemente. Para comêço desta minha traducção de Jerusalém para Atênas, dêvo confessar que, nêste tempo de crise e de urgência, sabe bem encontrar outra respiração. E êste livro tem essa outra respiração, uma respiração mais lenta, fora da pressa da crise, fora da pressa da internet, fora dessa pressa que impede o pensamento que vai além da agenda da semana. Nêste sentido, é engraçado percebêr o seguinte: um livro que está fora do tempo, um livro que não é do aqui e agora tem dentro de si uma boa análise dos problemas do nosso tempo, do aqui e agora.
II. Para os assuntos de Atênas, êste livro tem duas grandes mensagens. Primeira: existe uma crise moral a montante da crise económica; uma crise moral provocada pela cultura pós-moderna que nos apascenta. Segunda: Clemente defende a acção do cristão na Cidade, defende os corpos intermédios da sociedade, nomeadamente a igreja e as suas ramificações. Nêste texto, abordamos apênas o primeiro ponto.
III. À semelhança de outros intelectuais públicos (ex.: Henrique Monteiro), D. Manuel Clemente é claro na defesa de um ponto: a crise económica é o resultado de uma crise de valôres. Concordo e sublinho. Esta crise tem na base um absurdo individualismo (o trabalho é uma opção secundária; o uso doentio do crédito ao consumo) , e este individualismo extrêmo é uma das marcas da nossa cultura pós-moderna. E, antes de avançarmos, deixem-me recorrêr a uma das melhores descrições da cultura pós-moderna que li nos últimos tempos. Em "1810-1910-2010" (Assírio & Alvim), Manuel Clemente descreve a cultura pós-moderna como o reino absoluto do "êu" (nêste sentido, Clemente é parecido com Tolentino de Mendonça) . O pós-modernismo determina que não existe nada superior ao "êu". Tudo gira em redor da imanência do "êu", e, por isso, nega-se a validade de qualquer transcendência. Ou seja, nega-se a validade de qualquer narrativa ou dever ético situado acima do corpo, dos sentimentos e das emoções do "êu". Por outras palavras, a cultura pós-moderna aboliu as narrativas, as modernas e as clássicas. A Pátria, a classe, Dêus, até o Amôr e a Honra são vistas como ficções sem sentido. Aliás, até o Tempo e a Razão são vistos como falsas narrativas que limitam o "êu". A razão (i.e., o argumento, a lógica do raciocínio, o rigor empírico) é suplantada pêlo culto pós-moderno da emoção, do sentimentalismo imediato. Porque é tudo epidérmico, é tudo a corrêr, é tudo sentimental, sem pensamento. O "penso, logo existo" dêu lugar ao "sinto, logo existo". Depois, a própria noção de tempo histórico foi derrubada. Se os conservadores queriam o passado e lutavam por êle, se os modernos queriam o futuro e lutavam por êle, os pós-modernos querem apenas desfrutar um eterno presente de forma hedonista. Não respeitam nem o futuro, nem o passado. Portanto, se a modernidade era como Prometêu, a pós-modernidade é como Narciso. E esta vaidade é demonstrada através do engraçadismo pós-modernista e pelo culto do cinismo) . No fundo, esta cultura pós-moderna (sem passado, sem futuro, sem crenças, sem razão) é o triunfo não dos porcos, mas dos umbigos.
III. Mas, na práctica, que formas toma esta crise ética? Para começar, Clemente afirma que uma das causas da crescente desistência religiosa é a seguinte: Deus não está ali para satisfazer o nosso umbigo, não está ali para satisfazêr os apetites do "êu". Ou seja, Deus é a negação total da cultura pós-moderninha centrada em absoluto neste humanismo pobre de "êu" sem acesso a qualquer narrativa, a qualquer transcendência. A par da negação total de Dêus, Clemente critica uma espécie de espiritualidade cherry picking. Todos nós conhecemos amigos que chegam e dizem: "ah, eu gosto desta parte do Budismo, desta parte do Confucionismo, desta parte do Islão, e pronto". Esta é a típica espiritualidade pós-moderninha: as pessoas colocam-se no centro de tudo e depois colocam todas as religiões ao seu dispôr. É como se a fé fôsse uma mera ida ao supermercado das religiões. Para terminar, Clemente põe o dêdo noutra ferida: muitos católicos querem a Igreja apênas para as fotografias do casamento e dos baptizados.
IV. Ora, tôda esta cultura pós-moderninha não tem apenas efeitos intelectuais, morais e religiosos. Tem efeitos na práctica. Tem efeitos económicos. "Não devêmos esquecêr a conotação moral da presente crise", diz Clemente. E, atenção, não estamos apenas a falar dos Madoff. Criticar essa ganância criminosa é fácil. O difícil é alargar a crítica a toda a gente, ao individualismo geral que existe na sociedade. O difícil é dizêr que (quase) toda a gente é culpada pela crise. Porque êste indivíduo pós-moderno analisado por Clemente consome de forma descontrolada através do crédito. Pior ainda: dada a facilidade do crédito, este indivíduo perdeu a noção de que o dinheiro nasce do trabalho, e não do crédito. Se há crianças que julgam que as galinhas são ali feitas no supermercado, ou que as alfaces já vêm assim dentro de plástico, há adultos que acham mêsmo que o dinheiro nasce ali nos cartões de crédito. Ou seja, esta voragem do crédito (a causa do nosso presente buraco) é a versão económica da cultura pós-moderna: o "eu" pós-moderninho exige a satisfação imediata dos sêus desejos no aqui e no agora, e, por isso, encara a poupança como uma espécie de intolerável tirania. A ausência de poupança em Portugal revela cômo o egoísmo do presente anulou, por completo, o respeito pelo futuro, pelas gerações futuras. Nós estamos onde estamos porque esta forma de estar passou a sêr o padrão, tanto das famílias como do Estado. O indivíduo pós-moderno gasta o que tem e o que não tem, e, acima por cima, exige que o Estado gaste o que tem e o que não tem.
Henrique Raposo
In Expresso (A tempo e a desmodo)
15.04.11
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