As Côrtes de Lamêgo
NA LINGUAGEM POPULAR
A linguagem popular é uma florescência espontânea da alma em casamento com o próprio sentir e a paisagem. E é tão animada, que certas palavras, já mortas no Dicionário, ainda vivem, cheias de infância, nos seus dizeres.
Por isso, a linguagem popular é mais irmã do Verbo divino que a linguagem dos letrados. É a voz do sangue e da terra.
E as suas pitorescas expressões tão cheias das próprias coisas que traduzem! Como tudo vive nas suas frases! Como as
videiras choram, quando as ferem; como as
flores riem no mês de Abril; como as
névoas avoam da barra, pelo Dezembro!
Emprega mais a palavra
remoto que a palavra
distante; ignora a palavra
solidão, mas conhece a palavra
ermo. A sua extrema sensibilidade ao Mistério, criadora de uma verdadeira Mitologia nocturna que tem como Júpiter, o Medo, prefere os vocábulos nublosos, porque a ideia de ermo é a ideia de solidão obscurecida, e a ideia de distância é a ideia mais clara de remoto.
O
pego do rio, o
boco dos vales, as
horas mortas da noite, o
nevoeiro da manhã, são frases populares, de um misterioso e dramático sentido, e é fácil perceber-lhes a essência da legenda sebastianista (13).
As horas mortas da noite têm figura; são lívidos vultos silenciosos, passando por nós, vestidos de sombra. Fazem medo!
E assim
pego e
boco desenham imediatamente a alma escura e lúgubre dos rios e dos vales.
Vê-se o poder de encarnação que modelou a figura do Encoberto, ao mesmo tempo, sublimada pelo seu destino redentor.
Um
saudoso sentimento (14) das coisas murmura em vários dizeres da Linguagem popular, denunciando também a matéria original do nosso génio.
NAS PALAVRAS INTRADUZÍVEIS OU DO GÉNIO DA LÍNGUA
O génio da Língua é a essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis, que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos definida.
Na Língua portuguesa há um certo número de palavras altamente expressivas do que a nossa sensibilidade possui de mais íntimo e característico, e, por isso, sem equivalentes nas outras Línguas.
Mas conhecemos ainda uma célebre palavra animada pelos dois princípios religiosos que definem a alma pátria.
Não precisamos de reunir vários sentimentos comuns dos portugueses, para com eles desenharmos o seu carácter mortal. Há um que o define por completo. Refiro-me à Saudade.
Na imagem: Almeida Garrett
Analisai-a e vereis logo os elementos que a formam:
desejo e
lembrança, conforme Duarte Nunes de Leão;
gosto e
amargura, segundo Garrett.
O
desejo é a parte sensual e alegre da Saudade, e a
lembrança representa a sua face espiritual e dolorida, porque a lembrança inclui a ausência de uma coisa ou de um ser amado que adquire presença espiritual em nós.
A dor espiritualiza o desejo, e o desejo, por sua vez, materializa a dor. Lembrança e desejo confundem-se, penetram-se mutuamente, e precipitam-se depois num sentimento novo que é a Saudade.
Pelo desejo e pela dor, a Saudade representa o sangue e a terra de que descende a nossa Raça.
Assim, aqueles dois ramos étnicos que deram origem aos povos latinos, encontraram na Saudade e, portanto, na alma portuguesa, a sua divina síntese espiritual.
A Saudade pelo
desejo (desejar é querer e querer é esperar), em virtude da própria natureza do desejo, é também a esperança, assim como é
lembrança pela dor.
Mas, para além deste aspecto definido e revelado da Saudade, existe ainda a sua feição misteriosa, vaga e indefinida, que devemos perscrutar em outros vocábulos intraduzíveis, como
remoto, ermo, oculto, luar, nevoeiro, medo, sombra, etc. (15).
O génio da nossa Língua é o dom especial que ela tem de traduzir o sentimento saudoso da Natureza animada e inanimada.
NA FILOSOFIA
O génio lusíada é mais emotivo que intelectual. Afirma e não discute. Quando uma ideia se comove, despreza a dialéctica; e é
sendo e não
raciocinando que ela prova a sua verdade.
A emoção afoga a inteligência, ultrapassando-a como força criadora. E assim, corresponde à nossa superioridade poética, uma grande inferioridade filosófica. O português não é nada filósofo; a luz do seu olhar alumia mais do que vê; não abrange, num golpe de vista, os conhecimentos humanos, subordinando-os a uma lógica perfeita e nova que os interprete num todo harmonioso.
O português não quer interpretar o mundo nem a vida, contenta-se em vivê-la exteriormente; e tem, por isso, um verdadeiro horror à Filosofia, imaginando encontrá-la em tudo o que não entende.
Daí a sua incapacidade construtiva de novas verdades que representam o móbil superior do Progresso.
Mas haverá um pensamento português? Ou antes, a alma pátria, que nós conhecemos na sua ingénua expressão sentimental e poética, tornou-se já consciente, formulando a sua ideia da Vida e do Universo? Podemos responder que tal ideia começa a desenhar-se em Oliveira Martins e Antero de Quental, extraída do nosso originário misticismo naturalista (lirismo camoniano e popular).
(Antero de Quental)
Antero vislumbrou o casamento do Helenismo com o Cristianismo nos seus trabalhos filosóficos; e Oliveira Martins, de acordo com o sublime poeta dos
Sonetos, nos seus trabalhos sobre Antropologia e as Raças Humanas, genialmente lança a teoria da evolução criadora, atribuindo ao homem uma qualidade moral específica,
sui generis, que a evolução lamarckiana ou a mecanista dos seres não explica.
E neste critério existe um idealismo naturalista (porque admite, como resultante das forças vitais, um fenómeno supranatural) que é a fonte de algumas modernas tentativas filosóficas, entre as quais se destaca o
Criacionismo, de
Leonardo Coimbra.
Já nitidamente se vê a aurora de um pensamento português, o qual representa a cristalização luminosa da penumbra sentimental e originária do ingénito lirismo religioso e saudoso dos lusíadas.
NA JURISPRUDÊNCIA
É certo que a nossa jurisprudência deriva das leis godas e romanas, e a dos últimos tempos não é mais que uma cópia inferioríssima de leis estrangeiras que desnaturaram por completo o corpo jurídico do Estado.
Mas há leis na nossa antiga legislação, como as primeiras leis proteccionistas do comércio marítimo (côrtes de Atouguia) e do desenvolvimento da agricultura, que nasceram directamente do instinto que teve Portugal, depois de se fixar como Pátria, de se defender e consolidar. Ele começou por criar a família rural, ligando-a à posse duradoura da terra. Assim, entre nós, o
morgadio teve como origem uma lei (lei avoenga, da 1.ª Dinastia).
Temos ainda os forais e os princípios de direito político estabelecidos nas antigas cortes, revelando o espírito de independência e liberdade que animou sempre a alma popular. Intervinha no governo do País, na sucessão do trono, em todos os actos de interesse geral que o Rei praticasse: a guerra e a paz, lançamento de impostos, etc. E exercia ainda uma esperta vigilância sobre o procedimento dos homens de Estado, alguns dos quais foram acusados e condenados!
Em plena Idade Média, enquanto outros povos gemiam sob o peso do poder absoluto, impúnhamos à nossa Monarquia a forma condicional: o Rei governará se for digno de governar, e governará de acordo com a nossa vontade, expressa nas
cortes gerais reunidas anualmente.
E temos ainda várias leis antigas emanadas do
Costume, as quais receberam dele uma
nuance original que também caracteriza o génio português.
NA ARTE
Nuno Gonçalves (pintor), Soares dos Reis (escultor), além de outros artistas, deram à cor, ao mármore e ao som aquele
sentimento saudoso das coisas e da vida, que mostra, a uma luz de beleza original, o íntimo perfil do nosso espírito.
NA LEGENDA
Cfr. Sebastianismo, Aparição de Ourique e outras lendas populares reveladoras também da alma pátria.
NAS FRASES CÉLEBRES
São as frases de
certos heróis, proferidas nos instantes sublimes da vida perante a morte, e nas quais a alma humana atinge o relevo mais puro e transcendente.
Nelas perscrutamos, como nas obras de Génio, a intimidade da criatura e também da sua raça.
Tu tremes, carcaça? Que farias tu, se soubesses onde te vou levar! exclamou Turenne a caminho da batalha.
Nestas palavras se percebe o génio gaulês sublimado, a ironia da alma incidindo, como um raio divino, sobre a fraqueza corporal. É a autocaricatura de um herói, na qual ele mesmo se contempla, de imensa altura, e, doloroso, ri do seu temor...
Mac-Mahon, de origem inglesa, comandou o assalto às trincheiras de Sebastopol, na guerra da Crimeia. Quando os soldados ultrapassaram as primeiras muralhas, ficou de pé sobre elas, afrontando as balas do inimigo. E como o aconselhassem a abrigar-se do fogo, respondeu;
J'y suis, j'y reste!
Esta frase, em que a suprema coragem congelou, revela o génio do Norte, na sua forma de heroísmo.
Na imagem: Brasão do Conde de Avranches
Em Alfarrobeira, o nosso Conde de Avranches, vendo o seu irmão de armas já morto e sentindo-se cansado de lutar em nome da valorosa lealdade, exclamou, entregando-se às lanças da canalha:
Ó corpo, não podes mais! E tu, alma, já tardas!
Turenne, diante da Morte, escarnece o medo do seu corpo; Mac-Mahon atira ao rosto da Morte a sua fria indiferença; Álvaro Vaz d'Almada invoca a Morte como libertadora da alma, e à sua fraqueza humana dirige palavras tristes de perdão.
Se aquela frase anuncia o desejo de abandonar um meio em que triunfava a plebe ignara, mostra também a substância religiosa da alma pátria, encontrando em Deus o móbil da sua actividade. Assim, D. Sebastião, em Alcácer, perdida toda a esperança, voltou os olhos para o Céu. E este mesmo desânimo disse, mais tarde, em Lisboa, pelos lábios de Herculano:
Isto dá vontade de morrer!
NA RELIGIÃO
Entre a Poesia e a Religião há estreitos laços de parentesco. O verdadeiro sentimento poético é sempre
religioso, porque transcende a realidade sem a desnaturar.
Deus é o Homem infinito. E o poeta fala, entre os homens, a linguagem de Deus, para que eles se reconheçam na sua própria natureza etérea e progridam moralmente. O poeta auxiliando a alma popular no seu doloroso e obscuro trabalho revelador, mostra-lhe o rumo divino que ela deve seguir, acende-lhe, no coração, todos os sentimentos que nimbam de eterna claridade a pobre sombra humana.
Quem fez comunicar os homens com Deus foi o poeta. E os homens, desde então, conceberam, além da sua existência animal, uma outra, mais bela, esse longinquo centro de gravidade para que devem tender as suas mais altas aspirações.
O homem religioso viverá com alegria, porque viverá integralmente a sua vida, não a partilhando com a morte. A alegria de viver é viver a vida em absoluto. O que nos entristece e anoitece, é a vida que deixamos de viver; e, ofendida, nos magoa... O que, sobre o nosso esqueleto, substitui a sombra pela carne, é a capacidade de sonho transcendente que nos eleva a Deus, à Família e à Pátria, e nos obriga a cumprir alegremente a lei do sacrifício.
A essência original e livre (15) da alma pátria, deu originalidade e independência às nossas Letras, à nossa Arte, à nossa Política e também à nossa Religião.
É certo que a primitiva Igreja Lusitana viveu, durante muitos séculos, separada de Roma, e foi só por interesses políticos que Afonso Henriques a submeteu à Cúria (16).
Esta Igreja pertence à nossa tradição é é uma das provas mais eloquentes do
espírito de liberdade que caracterizou a nossa Raça.
Da sua reconstituição depende também o pátrio renascimento, concorrendo tal facto para a cultura religiosa do Povo que se tem abastardado, num grosseiro cepticismo destruidor daqueles nobres sentimentos que criam, no ser individual e animal, o ser espiritual: o Pai, o Patriota e o Homem.
(
Viriato, rei-pastor dos Hermínios e guerreiro da Lusitânia)
É preciso que o Povo encontre o culto religioso dos seus Avós - daquela Alma primitiva que, dentre a confusão das raças da Ibéria, ergueu bem alto a sua presença livre e inconfundível - primeiro na figura homérica de Viriato e depois em Afonso Henriques, esse rude estatuário de uma Pátria que as últimas gerações têm mutilado.
É tão vivo em nós o espírito de independência religiosa, que os nossos melhores teólogos sempre defenderam princípios de acordo com a autonomia da nossa Igreja. Assim Diogo Paiva de Andrade, Frei Bartolomeu dos Mártires e o célebre teólogo António Pereira, num tempo em que era absorvente o poder papal e o jesuítico, defenderam todos os princípios libertadores e nacionalizadores da Igreja Lusitana, a qual consiste na
congregação do Povo unido aos seus Bispos cuja jurisdição eles recebem directamente de Cristo e não do Papa. E o poder dado por Cristo aos Bispos é, em si, um poder absoluto e sem limites, por ordem ao governo de cada diocese. O Bispo é o Prelado supremo da sua diocese, e só a Deus deve dar contas do que faz. No episcopado se encerra todo o poder espiritual que Cristo deixou na Igreja, e o título Vigário de Cristo pertence a todos os Bispos e não somente ao Papa (Cfr.
Tentativa Teológica, de António Pereira).
Tais princípios defendidos pelos nossos melhores teólogos, demonstram que sempre existiu, em Portugal, muito vivo, aquele espírito de independência religiosa que é a essência do nosso Cristianismo familial e patriótico e um dos mais belos atributos da Raça. A ideia de Família e a de Pátria ligadas à ideia de Deus, representam uma hierarquia espiritual e divina que se não deve destruir. Por isso, a verdadeira igreja cristã é sempre nacional, como ainda hoje a igreja inglesa e outras.
A este conceito nacional da nossa Religião, responde logicamente o sentimento popular.
Não reconhece a supremacia romana, e o seu respeito pelo clero nacional depende das suas boas qualidades morais. É do Povo esta frase:
Acredito em Deus, mas os padres são homens como nós...
Todavia, se o padre for digno e caridoso, receberá de suas ovelhas o mais sincero amor e respeito; mas, se for um homem como os outros, será mal-visto e mesmo satirizado:
Todos os padres de missa
Aos infernos são chamados;
Inda ele têm mais filhos
Que os homens que são casados.
Canta o pardal no loureiro,
O rouxinol na silveira,
Os padres cantam no coro,
Rogam a Deus por dinheiro.
O padre quando namora
Logo põe a mão na coroa,
Namora, padre, namora,
Que Roma tudo perdoa.
(do Cancioneiro Popular)
Esta alusão satírica ao Papa e as outras quadras mostram que o Povo adora a Deus directamente, ou sem intermediários, de cuja natureza humana desconfia.
E o que lhe dá independência religiosa é a
alma saudosa que o anima.
Quem estudar as lendas e as festas populares (romarias) logo vê o nosso Cristianismo colorido de
vivas tintas pagãs:
Nossa Senhora da Veiga,
Ela lá vai Douro acima,
Com a cestinha no braço
Fazer a sua vindima.
Lá vem o Baptista abaixo
Vestido de azul-ferrete;
Numa mão traz a custódia
E na outra um ramalhete.
Desceram do céu à terra
Dois anjos embaixadores,
A buscar a Primavera
Que lá no céu não há flores.
Na primeira quadra, a embriaguez dionisíaca tinge de alvoroço alegre a celeste figura da Virgem que vai colher o negro fruto da Alegria...
Na segunda quadra, o Santo Precursor aparece-nos como trazendo, no emblema de Flora, o Santo Espírito. É o casamento do céu com a terra...
Na terceira quadra, mais se consagra ainda a terra, onde há o que não existe no céu: flores! E os Anjos vêm buscá-las ao mundo... A terra e o céu completam-se, como a alma e o corpo, a vida e a morte.
Esta sublime unidade (promessa de uma nova Luz) que atingiram, no génio da nossa Raça, o princípio cristão e o pagão (17),
claramente se descobre em todas as formas da nossa actividade intelectual e sentimental. E eis a característica mais profunda e bela da nossa Pátria (in
ob. cit., pp. 73-86).
Notas:
(13) Há outras de grande valor representativo nas obras dos nossos grandes autores, como «sol íntimo», de João de Deus.
(14) Se existe um «sentimento romântico», um «sentimento realista», etc., também há um «sentimento saudoso», que explica o nosso amor, idealismo, misticismo, isto é, a nossa atitude, perante a Natureza. Se o Espírito resulta de um movimento reflexo da vida sobre si própria e as suas formas anteriores ou materiais, este movimento é um acto de «lembrança desejosa». O Espírito é, portanto, o «estado saudoso» da Matéria; e a consciência é também um fenómeno de saudade... é esperança que se lembra...
Aquele estado sentimental adquiriu estranho relevo no génio dos lusíadas, em virtude de causas étnicas e de meio a que já nos referimos.
(15) A verdadeira independência consiste em vivermos à nossa custa económica e moralmente; e a verdadeira liberdade consiste em obrarmos em nosso próprio nome, em sermos nós em nossas obras e pensamentos.
(16) Cfr.
O Espírito Lusitano, p. 15.
(17) Já vimos que o sentimento religioso lusitano, em virtude da sua tendência naturalista, humanizou a Igreja, tornando-a familial, patriótica e anti-romana. » (Teixeira de Pascoaes)