CONVERSA COM
FERNANDO RODRIGUES DE ALMEIDA
“Na nossa sociedade ser ‘semita’ é mau, e por isso se nega a importância que alguns povos semitas, particularmente os fenícios, tiveram para a vida na antiguidade”, afirma o investigador.
Fernando Rodrigues de Almeida (n. 1960) - fundador da Quercus, escritor e investigador - acaba de publicar um livro que merece toda a nossa atenção. Intitula-se O Outro Lado da História e saiu com a chancela da Câmara Municipal de Odemira, vila onde desenvolve actividade docente na Escola Secundária local. Embora um olhar comodista procure arrumar a sua obra no campo das monografias com interesse meramente local, o facto indesmentível é que o seu estudo tem um enorme interesse para o entendimento das raízes mais remotas da cultura portuguesa, radicadas numa herança fenícia / cartaginesa, que foi sendo ocultada a partir do domínio político do Império Romano, o qual teve como principal opositor na Península Ibérica e no Norte de África precisamente o poder de Cartago. Traz-nos ainda uma sólida leitura da chamada “Escrita do Sudoeste”, que teimosamente alguns investigadores e divulgadores continuam a apresentar como indecifrável. A investigação de Fernando Almeida não dispensa ainda um olhar sobre alguma toponímia e documentação ligada ao litoral alentejano, provando quanto uma visão atenta da nomeação do espaço não consegue desviar-se do encontro com fósseis do falar semita das camadas populares do nosso país.
Resolvemos conversar um pouco com autor a propósito dessa edição. Aqui ficam as respostas de um homem que não tem medo de remar contra a maré de alguns cuja principal preocupação é demolir o conhecimento com insinuações, sem apresentar argumentos científicos minimamente sólidos para a sua discordância.
O seu livro intitula-se “O Outro Lado da História” e defende um visão pouco consensual dos tempos mais remotos do território hoje português. Que outro lado é esse?
O povo deste canto da Península, povo que depois de vencido pelo império romano não mais deixou de ser gente anónima sem direito à sua própria História, é efectivamente o objecto de estudo deste livro. Sigo-o desde o tempo em que possuía os seus próprios chefes e escrevia a sua língua no seu próprio alfabeto (a que chamamos hoje “escrita do Sudoeste”), até aos nossos dias, em que tanto a escola como os poderosíssimos meios de comunicação social tentam esmagar o mais possível os vestígios da antiga língua de origem fenícia, uniformizando todos os falares regionais à norma urbana de base latina. Esse é O Outro Lado da História, mas é essa a nossa verdadeira História, e que no essencial está por escrever. A que conhecemos, é a dos generais romanos, dos reis bárbaros, dos emires árabes, das famílias reais europeias; é a História de todos os que nos tentaram (com mais ou menos sucesso) impor a sua língua, forma de pensar e cultura; a quem pagámos impostos e de quem fomos escravos, servos, criados ou mesmo trabalhadores pobres e indiferenciados. Sabemos a História das elites. O povo no entanto não escreveu a sua História, e nem sequer falou a língua das elites. Redescobrir essa língua, quer pela decifração da escrita do Sudoeste, quer pela toponímia, pelas lendas, ou mesmo pela língua portuguesa actual, é a essência desse O Outro Lado da História. Evidentemente que esta perspectiva terá que ser sempre pouco consensual…
Até que ponto a sua visão foi influenciada pelos livros de Moisés Espírito Santo?
Moisés Espírito Santo é nesta matéria o pioneiro que para além de muitos outros méritos tem o de estabelecer a relação fundamental entre o português e o fenício. Sem ele, provavelmente a escrita do Sudoeste continuaria indecifrada por se desconhecer a língua em que os textos teriam sido escritos.
Que confirmação no terreno o levou a concordar com esse autor?
Tudo no terreno apoia a tese inicial de Moisés Espírito Santo, e só não o verá quem obstinadamente o não quiser ver. Há centenas de exemplos nos quais o investigador tropeça a cada dia. Um exemplo de entre muitos que constam do O Outro Lado da História, e de muitos outros que se poderiam dar: o topónimo “Malavado” provém de “mal av ad”, e significa em fenício “poço de águas subterrâneas que transborda”; em todos os locais com este nome (ou nomes parecidos, como “Malvado”, “Mal Lavada”, etc.) existe grande abundância de água, e poços artesianos. Tudo o mais, na toponímia, nas lendas, no nosso falar actual, etc. mostra claramente que se falou “fenício” por aqui.
Propõe uma leitura inovadora da chamada “Escrita do Sudoeste” numa época em que ainda ouvimos alguns académicos, historiadores e arqueólogos afirmarem que ela é indecifrável. Onde se alicerça a sua audácia, se ela existe?
A proposta de decifração que faço é fruto de perto de 15 anos de trabalho, e não lhe vejo nenhuma audácia, mas apenas alguma intuição combinada com muito trabalho e esforço dedutivo. É normal que haja resistências ao meu trabalho, quer pela natural tendência do ser humano de desconfiar do que é novo, quer porque é efectivamente complexo todo o processo de decifração e tradução, e eventualmente nem todos serão capazes de o compreender com facilidade…
De onde virá a resistência do meio académico português à aceitação de um passado semita da nossa cultura?
A ciência, como todos sabemos, é feita por gente, e a gente, cientista ou não, tem preconceitos que afectam a sua visão e compreensão do mundo. Na nossa sociedade ser “semita” é mau, e por isso se nega a importância que alguns povos semitas, particularmente os fenícios, tiveram para a vida na antiguidade, o que às vezes acaba por roçar o ridículo. Para nós, seria bom por exemplo ter origens gregas, era tão bom que até já houve quem pretendesse encontrar em Ulisses o fundador de Lisboa…
Palermices à parte, devem ter sido os romanos quem mais denegriu o nome dos seus inimigos mais perigosos – os fenícios, que estavam instalados em Cartago, na Península Ibérica e grande parte da bacia do Mediterrâneo. Os documentos escritos que se conservaram ao longo dos séculos são romanos, dos seus aliados, e de elites religiosas e intelectuais europeias que se filiam na cultura latina, e daí o preconceito que passa de geração em geração entre investigadores e académicos. Na nossa cultura gostamos tão pouco de povos semitas que até dizemos que foram os judeus a matar Cristo, como se Cristo não fosse ele próprio judeu…
Na sua opinião, como se deu a introdução dos falares fenícios / cartagineses em território do ocidente peninsular?
Esta é uma questão complicada para a qual não tenho uma resposta segura. Parece plausível que os povos portadores da agricultura e do Neolítico fossem semitas. A agricultura é uma actividade complexa que não é fácil de dominar sem uma vivência quotidiana prolongada, e foram semitas os povos que primeiro a desenvolveram. Parece portanto tentador admitir que o povo que trouxe a agricultura tenha trazido a língua. Mas há topónimos que têm uma distribuição que sugere uma ocupação do território mais tardia; por outro lado, é igualmente tentador admitir que o povo da escrita do Sudoeste tenha chegado na época em que foram feitas as inscrições, ou seja, no Bronze Final e início da Primeira Idade do Ferro; seria portanto uma vaga de colonos fenícios a chegar e impor a língua… Penso que neste momento ainda não se podem ter certezas nesta matéria.
Que manifestações ainda existem dessa maneira de falar e dessa cultura?
Há muitíssimas marcas dessa língua, que de resto sobrevive mesmo no português padrão: quando dizemos “chão”, “curral”, “labareda”, etc., etc., estamos a usar palavras fenícias. Penso que é essa influência fenícia que cria as particularidades das línguas ibéricas (em especial do português) no contexto das línguas latinas. No que se refere à cultura teremos certamente muitas marcas, a começar pela religião popular: quem leia o Antigo Testamento encontrará nele descrições que podiam ser aplicadas aos nossos santuários rurais.
Que é preciso fazer para continuar a aprofundar esse veio da nossa identidade cultural?
É necessário prosseguir com este tipo de trabalho baseado no estudo da língua e da cultura popular, pois é aí que reside a verdadeira essência do “ser português”. Com mais investigadores, mais tempo, mais trabalho, novos e mais profundos conhecimentos surgirão. Haverá ganhos até ao nível do conhecimento das línguas mortas como o ugarítico ou o acádio, já que mantemos no português termos comuns a essas línguas e ainda hoje se pode ver o contexto em que são usados, o que pode mesmo ajudar a melhorar traduções de textos antigos. Há portanto todo um mundo a explorar, assim haja quem o trabalhe.
Também escreve contos, estreitamente ligados à memória do espaço e dos seres que o habitam, como é visível em Histórias ao Serão [2009]. Existe alguma relação entre o seu trabalho como investigador e aquele que desenvolve escrevendo a partir da memória local?
As historinhas que escrevo mergulham na cultura rural que tento conhecer o melhor possível, e esse é o único elo de ligação à investigação histórica e linguística. São histórias simples e sem pretensões, mas que retratam o mundo rural antigo, e que penso que se consigam ler com gosto. Eu pelo menos gostei de as escrever.
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