O título só aparentemente é prosaico, pois dessa maneira o não queremos. Esperança, no sentido escatológico, emerge da raiz dos sentimentos mais nobres, e transcende, por exemplo, o anseio sobre as probabilidades de nas próximas semanas ou meses as leis do mercado ficarem mais favoráveis, ou de determinada figura poder vir a regenerar certo partido político ou meio social. Nestes anos iniciais e indecisos do século XXI, ao contrário das religiões (cada uma à sua maneira) que anunciam a Esperança num Salvador, o mundo profano, entendido como o meio onde só se pensa o lado material da vida, representado pelos grupos tecno-buro-plutocráticos, pelos governos orgulhosamente laicos (mas parece que nem tanto), não se atreve a pensar num Salvador. Já não dizemos um todo-poderoso, o que democraticamente soaria mal, mas pelo menos alguém de rara inteligência, que vindo na curva do destino sepultasse condignamente mediocridades e más-vontades.
Esta espécie de nihilismo da Esperança, que cresce como erva ruim no homem habituado a depender da conta bancária, nesse que se descentrou da sua verdadeira condição, não acontece apenas por sobranceirismo intelectual, mas por uma ignorância que a si mesmo já se não reconhece como tal.
Da Esperança como categoria escatológica, não pode haver semelhança ou mesmo analogia com qualquer outra, pois a primeira fundamenta-se na vinda de Alguém ou Algo que por fim justifique o sentimento de ânsia positiva a que chamamos Esperança; no segundo caso ela é apenas uma mezinha que, eficaz para um dado momento, logo se esfuma no efémero.
No que a palavra significa verdadeiramente é difícil encontrar semelhança entre a esperança de um político voraz ou de um religioso convicto e praticante, entre a de um cidadão laicizado e o compassivo e humilde servidor do próximo. Os tempos de modernidade, com aquilo que de bom (compensatório) têm trazido e muitas vezes não enxergamos, têm apagado a ideia de que uma ideologia não é uma filosofia ou doutrina, e uma religião ou credo espiritual não se regem por regulamentos ou constituições, necessários, mas que duram enquanto duram. Quando não há um Salvador (que é sempre um Desejado) não se acreditando num Ser enviado, não se admitindo a excepcionalidade individualizada (dada a tendência do actual ensino democrático nivelar “por baixo”, ou quem desponta encaixá-lo num grupo porque aí se esbaterá convenientemente), não havendo Esperança, em suma, o êxito de continuar, numa espera optimista, só pode vir ultrapassando e empurrando os outros – sejam países, associações, empresas e parceiros. É claro que o “salvador” só pode ser mais lucro!
É fulcral o contraste com um verdadeiro Salvador (Avatar) que as religiões apresentam – Aquele que por modos inefáveis, mas depois evidentes, constitui a Esperança salvífica, na medida em que há superação pessoal, aperfeiçoamento (alquimia) individual, polimento desde a pedra tosca ao diamante de luz. Superação pessoal e ajuda fraterna! Como é diferente da ideia (absurda) de um grupo económico ou partido político ajudar outros a crescerem, a minimizarem as suas dificuldades...
Não desconhecemos as interacções do ser humano nos vários sectores da vida actual, a verdade em tudo se cruza e entrecruza, mas queremos, para já, a utopia de que um dia as leis do mercado, quando o mercado for outro, sejam reflexo da ordem do Cosmos através da justeza (melhor que justiça), pelo número na divina proporção, conforme sabia Pitágoras. Um dia será Reino: num espaço e no tempo, mesmo que a isso chamemos outra dimensão. Cristo como Avatar da humanidade já disse que era possível. Mais: que seria um facto. O Salvador do mundo cristão, apresenta-nos contudo um ponto doutrinal único, e que assim remete a Esperança n´Ele para uma universalidade omniabrangente: é um Salvador que já veio e que regressará de novo. Entre estes dois marcos, eis o solo mais fértil para o germinar ou mais propriamente para o fortalecimento da Esperança, para uma sempre mais reverdecida Primavera da Humanidade.
Ao longo dos tempos, certos arquétipos religiosos, na roupagem dos mitos, vão-se estratificando psíquica e espiritualmente nas sociedades. É difícil encontrar uma nação que não tenha um salvador para os seus filhos. Quando as elites culturais (as únicas que podem estar vigilantes sobre o tónico espiritual para o seu povo) ou por não existirem ou por estarem impossibilitadas de algum modo, não podem alimentar esse mito salvador, a pátria entra na amargura, deixa de ter Esperança. Assim, é de admitir esta nuance de Esperança, interpondo-se entre a verdadeiramente escatológica e a outra, que não existe, no mundo dos negócios e das transações.
Esperança e Messianismo sempre de mãos dadas. Mas messianismos sem messias parece-nos absurdo. Só podemos entender a frase de André Neher «O Messias vem do Homem; é o que o homem dá a Deus» se esse mesmo homem viver em quotidiano religare, sendo uma espécie de circunferência que não ignora o seu centro. Parece que os i smos têm proliferado em boa parte derivados ao erro cometido.
O sentimento profético-salvífico, vindo do antigo judaísmo, enlaçado depois no cristianismo embora este de contornos diferentes, conhece, nos últimos dois séculos, certo declínio quando remete a esperança num salvador apenas dentro do homem. Dizemos certo declínio, porque este posicionamento é uma faca de dois gumes, e infelizmente o que mais tem cortado tem sido o que ganhou relevo no pressuposto de que a esperança e a acção procedem do ser humano transitório e não daquela chispa divina que nele habita, e muitos sabem ser real. É interessante observar que menos vezes aparece a palavra esperança nos textos bíblicos, comparativamente a uma outra - fé. Certo é que esta pressupõe aquela, mas o contrário pode não ser verdade. Tal como nos milenarismos do passado, perante a angústia da decepção, o sentimento de esperança era, muitas vezes, acompanhado do de revolta. Aí a interposição, digamos cultural, entre a palavra no autêntico sentido escatológico e a simples mezinha para melhorias de assuntos passageiros.
Ainda que o nosso Sampaio Bruno (1857-1915) acreditasse que a Esperança - personificada como é no Desejado - estaria no devir do próprio homem, do homem novo, o pensador português não ignorava o Salvador transcendente e, consequentemente, quanto mais não fosse o seu arquétipo a nortear a vida do homem-peregrino na Terra. Bruno utilizou bem a tal faca de dois gumes, e poderíamos dizer que o seu pão tem sido almejado por muitas gerações e até “multiplicado”, bem entendido, nas resultantes diversidades.
O problema fulcral da Esperança no contexto português viu-o lucidamente José Marinho (1904-1975), e chegado até nós na obra vinda recentemente a lume - Nova Interpretação do Sebastianismo e outros textos (Imprensa Nacional - Casa da Moeda). Não só nos diz que «a esperança é a virtude sebástica, por excelência» (pág. 36), como nos ilumina com esta ideia-chave - o mito sebástico é um colapso no tempo: «... Portugal, depois das descobertas e da aventura sebástica, saltou para fora do tempo (...) Aquele que vive até aos extremos limites do tempo e do espaço, não pode já caber no tempo e no espaço. Por isso nós dizemos que Portugal saltou fora do tempo» (pág 190). Na companhia de José Marinho, finalizamos com uma última citação: «E pois que a fé tem suas implícitas e explícitas concomitantes a esperança e a caridade, é o mito, é a lenda messiânica o sempre recomeçar da esperança e o restabelecer dos concretos laços fraternais que vinculam os homens». (pág. 137).
Também num admirável relance sintético, Pinharanda Gomes, em Dicionário de Filosofia Portuguesa (publicações D. Quixote, pág. 155), nos diz que: «o messianismo português é complexo e compósito, ininterrupto e persistente, apesar de eventuais quebras na sua filosofia através dos tempos. Se avaliarmos apenas pelo que se vê, concluiremos que a cristologia católica predomina sobre o messianismo hebraico e sobre o madismo muçulmano, mas não obsta ao surgimento de um messianismo que, embora radicado nas três tradições, se assume também em foros delas separados». Assim sendo, parece que o autor nos convida a viver esta tão heterodoxa Esperança portuguesa.
Vale a pena, para finalizar este artigo, uma referência ao livro recentemente editado pela Fundação Lusíada, Mapa Metafísico da Europa, do pintor e pensador Carlos Aurélio, obra de visão superior a mostrar que há outros modos de ver a Europa com mais Esperança, e menos cobiça económica. Para o autor existe uma geografia, simultaneamente da terra e do Homem deste nosso nosso continente que pode ser misticamente simbolizada um pouco além daquela figura conhecida como a Virgem Coroada de Heinrich Bünting, séc. XVI. No metafísico espaço europeu, útero de grandes culturas, da filosofia, do renascimento raiz da modernidade, ela tem um nome concreto e chama-se (hoje mais almejada do que nunca) Nossa Senhora da Esperança – radiosa e irradiante de Vila Viçosa, de Estremoz, de todo o Portugal, da Europa, do Mundo. «A Senhora é da Esperança ao modo da língua portuguesa antiga e popular ao designar a mulher quando grávida, esperando o filho: “está de esperanças”».
Fernando Pessoa disse que «a alma lusitana está grávida de divino». No referido livro de Carlos Aurélio sentimos que há uma Europa que também está metafisicamente grávida, e assim todo o mundo está “de esperanças”.
(in «ESPERANÇA:
A escatológica e a que não existe nas finanças, na economia e na política» de Eduardo Aroso)