Voar
Sei de uma rapariga que vôa. Chama-se Natsumi Hayashi, é fotógrafa e vive em Tóquio. Digo que ela vôa, por vêr as suas fotografias, de que gosto tanto. A bem dizêr não tenho outras provas. Mas nas suas fotografias, acreditem, ela está sempre a voar. E são muitas centenas de imagens, a horas diferentes, em lugares distantes. Onde quer que se faça vêr, Natsumi Hayashi levita, como se pudesse deslocar-se em vôo. Às vezes surge um registo por dia, no esplêndido diário, em forma de blogue, que ela mantém. Se quiserem ir espreitar, o enderêço é o seguinte: http://yowayowacamera.com/ . Quem lá fôr fica a sabêr que esta conversa é a sério e passará a conhecêr alguém que vôa.
Às vezes perguntam-me onde é que no mundo está a poesia. Acho que tôdos sabemos como o mundo pode sêr um lugar prosaico e violento, sem fulgôr nenhum, uma máquina de tortura para as questões do espírito, uma parede implacável que nos derruba. Mas não será apenas isso o mundo. E mêsmo quando êle se parece reduzir dolorosamente a isso, não podêmos esquecêr que todos os dias êle é salvo. A mim faz-me bem relêr o poêma que Jorge Luís Borges escrevêu sobre aquêles que salvam o mundo. Chama-se “Os justos”:
«Um homem que cultiva o sêu jardim, como sugeria Voltaire.O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazêr uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma côr e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercêtos finais de um certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo».
No sentido do poêma de Borges, eu não tenho dúvidas que as fotografias de Natsumi Hayashi estão a salvar o mundo. O primeiro juízo que se faz sobre elas é que são estranhas. Olhamos repetidamente para percebêr o que nelas acontece, como é que a situação que relatam foi produzida, essas coisas. É verdade, que se pode arrumar depressa o assunto dizendo: “está bem, é uma miúda aos pulos em contextos diversos de um quotidiano urbano, nada mais”. Porém, dizêr isso, anula o trabalho de restauração do mundo que está a sêr posto em prática. As imagens de Natsumi Hayashi documentam o sonho que todos têmos, pois como Ícaro, o herói grêgo, também nós aspiramos por sair do nosso labirinto. Ícaro experimentou sair com umas asas de cêra e pênas fabricadas por Dédalo, sêu pai. E nós? A história humana, a grande e a pequena história humana, não passa de um estaleiro imenso ao serviço da invenção de asas. Natsumi Hayashi como que nos ajuda a pedir: “O voo nosso de cada dia, nos dá hoje”. É uma oração necessária. Sim, é possível a cada um de nós erguêr-se do peso das coisas, transcendêr-se, perfurar a cápsula de penumbra e desânimo que se abate sôbre a vida, êlevar-se, recolocar-se perante a linha límpida do horizonte.
José Tolentino de Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira)
27.03.11
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